A ALMA ANCESTRAL DO BRASIL
Roberto Gambini
Tenho refletido sobre o Brasil
apoiando-me em minhas duas vertentes, a de sociólogo e a de analista junguiano.
Para entender uma pessoa preciso, compreender o meio em que ela vive e só posso
entendê-lo se compreender a pessoa. Essas duas dimensões caminham eternamente
juntas e da mesma forma como me sinto sempre fascinado para compreender os
mecanismos do inconsciente, as idéias de Jung e a fenomenologia do espírito,
sinto-me permanentemente atraído a pensar sobre este país. Minha maneira de
refletir sobre o Brasil tem sido através da imagem da alma - e quando digo
alma, esta palavra tão usada e abusada pelo Catolicismo, digo algo que todo
mundo entende. Estou, há muito tempo, em busca da alma brasileira e para isso
tenho feito uma reflexão acerca de nossa origem, de nossa História e de nosso
drama arquetípico. Num certo momento da trajetória senti-me compelido a
retroceder no tempo para muito antes de nossa origem européia e foram então
tomando forma a idéia e o interesse por algo que passei a chamar de "alma
ancestral do Brasil".
Nós, como povo, temos um grande
problema, que é a ausência de um mito de origem. Temos vergonha de nosso
passado, que encaramos como se fosse um buraco negro, uma bruma, uma imagem
vagamente aterradora ou claramente desprezível. Começamos a contar nossa
história de povo a partir de um ato fabuloso chamado Descobrimento - que
sabemos ser uma inverdade e o termo correto, Invasão - e construímos um
arremedo de identidade a partir de 1500, o ano do encontro de duas parcelas da
Humanidade, uma caucasiana e outra autóctone, indígena. Mas não levamos em
conta o mito de origem. Tal fato me parece acarretar graves conseqüências no
que diz respeito à estruturação de nossa consciência coletiva e à maneira como
individual e coletivamente nos relacionamos com as camadas profundas do
inconsciente. Como negamos nossa origem ancestral, nós a deturpamos, nós a
transformamos em algo diverso do que é. Enquanto povo, começamos já destruindo
aquilo que tínhamos de mais precioso. Acolho essa idéia com bastante interesse,
porque acho que ela nos ajuda a entender o subdesenvolvimento, que não nos
"aconteceu" no século XX; nós já começamos subdesenvolvidos. Porque a
alma ancestral brasileira é de uma riqueza, de uma importância, de uma
profundidade tal que, se não a tivéssemos negado, estaríamos realizando através
de nossa história uma grande síntese de duas maneiras de ser humano, a européia
e a ameríndia. Mas não foi feita uma síntese histórica de duas polaridades; o
que ocorreu historicamente foi a negação de um pólo pela predominância
arrasadora de outro.
Seria bom se começássemos a pensar em
nós mesmos do seguinte modo: temos atrás de nós um tesouro inestimável,
sistematicamente negado e ignorado através dos séculos. Como isso se deu
historicamente a partir do século XVI é fácil pesquisar. Mais difícil é
reconhecer que essa negação continua até hoje a se repetir no interior de nossa
psique e é por essa razão que me sinto motivado a falar sobre esse tema. Geração
após geração repete-se na cultura e em cada um a destruição de uma raiz
preciosa e jamais reconhecida. Jung nos ensinou claramente: a inconsciência
coletiva se auto-perpetua. Nossos filhos continuam a carregar a mesmo coisa que
nós. Será que a consciência coletiva brasileira vai continuar ignorando e
desqualificando sua raiz mais profunda, base e sustentação de sua mais
verdadeira individuação?
Quando digo raiz, estou pensando em
coisas mais precisas. As evidências atuais da Arqueologia, que é um campo em rápida
transformação em nosso meio, indicam que o território ameríndio vinha sendo
ocupado por seres humanos não há dois, três ou quatro mil anos, como sempre se
supôs, mas há dez, vinte, trinta... Essa é uma disputa teórica que envolve
interesses acadêmicos pesados, porque se houver o reconhecimento de que o homem
entrou, certamente pela Península de Yucatã, na América do Sul há cinqüenta mil
anos, isso muda muitas afirmações evolucionistas e muita teoria da Antropologia
Física sobre ocupação de territórios, expansão, adaptação, difusão de inventos
e periodizações culturais. Há muitos interesses pseudo-científicos em jogo. Mas
hoje existe o método de datação pelo carbono 14 e muita coisa ficará
esclarecida. Os professores de História do Brasil vão ter que se reciclarem
para poderem então dizer às crianças algo do tipo: "imaginem que este solo
em que pisamos talvez há cinqüenta mil anos já era habitado..."
Isso significa que as grandes
questões da humanidade, as eternas questões do ser humano, já estavam sendo
elaboradas e já tinham sido resolvidas por esses povos indígenas há milhares de
anos, muito antes do surgimento de Portugal ou da própria civilização européia
que veio a ser a matriz de nossa atual consciência. Que questões são essas? São
as seguintes: Como sobrevive e não se morre de fome, de abandono, de ataques
violentos? Como se vive em sociedade? Como se procria? Como se organiza o
convívio? Como se resolve o problema da cultura material, da produção de bens
de uso? Como se dá sentido à vida? O que é o bom, o belo, o justo? O que é
cruel, mau, injusto? O que é a morte, e o que há depois dela? O que é a doença,
como se promove a cura? Como tudo começou? O que torna a vida bela e nos faz
ter vontade de vivê-la? Onde se pode cozinhar uma comida, onde se pode guardar
água, onde se pode morar? Como se atravessa um rio, como se mata um onça?...
Essas questões foram todas, sem
exceção, resolvidas pelos povos ditos primitivos que habitavam as Américas de
Norte a Sul de maneira tal que o resultado acumulado é um saber altamente
organizado, profundo, completo, coerente, muito diverso do nosso e ao qual
chamo de tesouro (ou de raiz). É um conjunto de observações da natureza que se
estruturou e confirmou ao longo de séculos e séculos, produzindo conhecimento
sobre a terra, o corpo, a mente, o espírito, o grupo, os outros e os deuses, a
flora e a fauna, a metereologia, as águas, o vento e o fogo, a cópula, os
sentimentos, a dor, os desejos, a morte e o além, o horror, o encantamento e a
eternidade. Isso tudo cria alma.
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