9 de set. de 2012

A alma Ancestral do Brail - Parte 1



A ALMA ANCESTRAL DO BRASIL


Roberto Gambini

Tenho refletido sobre o Brasil apoiando-me em minhas duas vertentes, a de sociólogo e a de analista junguiano. Para entender uma pessoa preciso, compreender o meio em que ela vive e só posso entendê-lo se compreender a pessoa. Essas duas dimensões caminham eternamente juntas e da mesma forma como me sinto sempre fascinado para compreender os mecanismos do inconsciente, as idéias de Jung e a fenomenologia do espírito, sinto-me permanentemente atraído a pensar sobre este país. Minha maneira de refletir sobre o Brasil tem sido através da imagem da alma - e quando digo alma, esta palavra tão usada e abusada pelo Catolicismo, digo algo que todo mundo entende. Estou, há muito tempo, em busca da alma brasileira e para isso tenho feito uma reflexão acerca de nossa origem, de nossa História e de nosso drama arquetípico. Num certo momento da trajetória senti-me compelido a retroceder no tempo para muito antes de nossa origem européia e foram então tomando forma a idéia e o interesse por algo que passei a chamar de "alma ancestral do Brasil".
Nós, como povo, temos um grande problema, que é a ausência de um mito de origem. Temos vergonha de nosso passado, que encaramos como se fosse um buraco negro, uma bruma, uma imagem vagamente aterradora ou claramente desprezível. Começamos a contar nossa história de povo a partir de um ato fabuloso chamado Descobrimento - que sabemos ser uma inverdade e o termo correto, Invasão - e construímos um arremedo de identidade a partir de 1500, o ano do encontro de duas parcelas da Humanidade, uma caucasiana e outra autóctone, indígena. Mas não levamos em conta o mito de origem. Tal fato me parece acarretar graves conseqüências no que diz respeito à estruturação de nossa consciência coletiva e à maneira como individual e coletivamente nos relacionamos com as camadas profundas do inconsciente. Como negamos nossa origem ancestral, nós a deturpamos, nós a transformamos em algo diverso do que é. Enquanto povo, começamos já destruindo aquilo que tínhamos de mais precioso. Acolho essa idéia com bastante interesse, porque acho que ela nos ajuda a entender o subdesenvolvimento, que não nos "aconteceu" no século XX; nós já começamos subdesenvolvidos. Porque a alma ancestral brasileira é de uma riqueza, de uma importância, de uma profundidade tal que, se não a tivéssemos negado, estaríamos realizando através de nossa história uma grande síntese de duas maneiras de ser humano, a européia e a ameríndia. Mas não foi feita uma síntese histórica de duas polaridades; o que ocorreu historicamente foi a negação de um pólo pela predominância arrasadora de outro.
Seria bom se começássemos a pensar em nós mesmos do seguinte modo: temos atrás de nós um tesouro inestimável, sistematicamente negado e ignorado através dos séculos. Como isso se deu historicamente a partir do século XVI é fácil pesquisar. Mais difícil é reconhecer que essa negação continua até hoje a se repetir no interior de nossa psique e é por essa razão que me sinto motivado a falar sobre esse tema. Geração após geração repete-se na cultura e em cada um a destruição de uma raiz preciosa e jamais reconhecida. Jung nos ensinou claramente: a inconsciência coletiva se auto-perpetua. Nossos filhos continuam a carregar a mesmo coisa que nós. Será que a consciência coletiva brasileira vai continuar ignorando e desqualificando sua raiz mais profunda, base e sustentação de sua mais verdadeira individuação?
Quando digo raiz, estou pensando em coisas mais precisas. As evidências atuais da Arqueologia, que é um campo em rápida transformação em nosso meio, indicam que o território ameríndio vinha sendo ocupado por seres humanos não há dois, três ou quatro mil anos, como sempre se supôs, mas há dez, vinte, trinta... Essa é uma disputa teórica que envolve interesses acadêmicos pesados, porque se houver o reconhecimento de que o homem entrou, certamente pela Península de Yucatã, na América do Sul há cinqüenta mil anos, isso muda muitas afirmações evolucionistas e muita teoria da Antropologia Física sobre ocupação de territórios, expansão, adaptação, difusão de inventos e periodizações culturais. Há muitos interesses pseudo-científicos em jogo. Mas hoje existe o método de datação pelo carbono 14 e muita coisa ficará esclarecida. Os professores de História do Brasil vão ter que se reciclarem para poderem então dizer às crianças algo do tipo: "imaginem que este solo em que pisamos talvez há cinqüenta mil anos já era habitado..."
Isso significa que as grandes questões da humanidade, as eternas questões do ser humano, já estavam sendo elaboradas e já tinham sido resolvidas por esses povos indígenas há milhares de anos, muito antes do surgimento de Portugal ou da própria civilização européia que veio a ser a matriz de nossa atual consciência. Que questões são essas? São as seguintes: Como sobrevive e não se morre de fome, de abandono, de ataques violentos? Como se vive em sociedade? Como se procria? Como se organiza o convívio? Como se resolve o problema da cultura material, da produção de bens de uso? Como se dá sentido à vida? O que é o bom, o belo, o justo? O que é cruel, mau, injusto? O que é a morte, e o que há depois dela? O que é a doença, como se promove a cura? Como tudo começou? O que torna a vida bela e nos faz ter vontade de vivê-la? Onde se pode cozinhar uma comida, onde se pode guardar água, onde se pode morar? Como se atravessa um rio, como se mata um onça?...
Essas questões foram todas, sem exceção, resolvidas pelos povos ditos primitivos que habitavam as Américas de Norte a Sul de maneira tal que o resultado acumulado é um saber altamente organizado, profundo, completo, coerente, muito diverso do nosso e ao qual chamo de tesouro (ou de raiz). É um conjunto de observações da natureza que se estruturou e confirmou ao longo de séculos e séculos, produzindo conhecimento sobre a terra, o corpo, a mente, o espírito, o grupo, os outros e os deuses, a flora e a fauna, a metereologia, as águas, o vento e o fogo, a cópula, os sentimentos, a dor, os desejos, a morte e o além, o horror, o encantamento e a eternidade. Isso tudo cria alma.

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