No decorrer dos próximos três
séculos, a essa crescente massa amorfa junta-se o triste contingente de
africanos escravizados, igualmente arrancados de seu contexto e misturados
entre si para que se anulassem as diferenças étnicas e culturais de origem. A
segunda matriz brasileira, aquela resultante da união entre branco e negra e
todas as possíveis demais combinações - mantido evidentemente à parte o ventre
branco - gerará os mestiços mulatos que sofrerão a mesmo imposição existencial
de não poderem saber quem são e de onde vêm. Mas de ventre branco também nasceram
bastardos. Preocupados com a devassidão de costumes sexuais que tão cedo se
implantava no Brasil, os jesuítas logo se apressaram a solicitar que a
Companhia de Jesus em Lisboa despachasse para a Colônia mulheres brancas para
que se garantisse um mínimo de eugenia. E eis que em meados do século XVI
aporta no litoral a nau das prostitutas, desembarcadas após receberem a bênção
a bordo. Com elas veio a sífilis para uma terra que até então desconhecia esse
e outros males. E com elas as portugueses acasalarão como alternativa às índias
por recomendação expressa dos missionários, que com esse gesto demonstram
colocá-las no mesmo plano. Vemos portanto que a fantasia de feminino que os
portugueses traziam em sua mente era mesmo a da puta. E as mulheres da terra tiveram
que carregar essa projeção sobre a cabeça.
A Grande Mãe do Brasil é uma índia,
esse é o nosso mito e nossa verdade histórica e psicológica. Temos que começar
a considerar esse mito, e não apenas o da grande mãe babilônica, grega ou
romana, que tanto se estuda nos círculos junguianos. De novo: se Erich Neumann
conhecesse a mitologia brasileira, ele sem dúvida a teria incluído em seu
trabalho sobre o tema. Já nosso consciência coletiva não reconhece mesmo a
existência dessa mãe ancestral, que não aparece em produto algum de nossa
cultura ou de nossas especulações pseudo-psicológicas de que escola for.
Mas para não perder o fio: diz Darcy
Ribeiro, a meu ver de modo brilhante, que foi preciso, no século XIX,
inventar-se um país chamado Brasil para que esse povo de Zé Ninguém pudesse
dizer que pertencia a alguma coisa. Essa é a verdadeira questão por trás da
factualidade ostensiva da proclamação da Independência pelo filho rebelde do
monarca português, identificado com a jovem nação que pretendia ser levada a
sério. É como se a psique coletiva, atingido aquele ponto de saturação,
estivesse a pressionar no plano institucional pela formalização de um mínimo de
persona coletiva, para assim assegurar a manutenção do vácuo psíquico interior
de que éramos feitos. O povo brasileiro estava finalmente querendo ser dono de
seu próprio nada. Ganhamos então um país internacionalmente reconhecido que nos
permitia sermos o pouco que éramos. E é preciso olhar para o passado histórico
nesses termos, porque só assim se entre em contato com aquela revolta no fundo
do estômago que possibilita a recusa do status quo, que permite dizer:
"não precisa necessariamente ser assim".
Contamos hoje com um dos plantéis
genéticos mais ricos do planeta e com um dos complexos culturais mais diversificados
que se possa conceber no mundo atual. O desafio que nos cabe é: será ou não
possível extrair a quintessência alquímica dessa matéria prima? Será que nossa
consciência já chegou a esse ponto? A alma ancestral brasileira é hoje uma alma
penada; e aquela que se constitui a partir de 1500 sofre de um complexo
nacional de inferioridade e está com sua energia criativa reprimida. Não tem
sido mais possível sonhar no Brasil, um sonho coletivo compensatório das
misérias de uma sociedade injusta que nos dissesse o que o inconsciente espera
de nós e o que nos reserva como possibilidade histórica. Esse sonho foi
esboçado nos anos 60, mas a repressão militar foi longe demais e traumatizou
nossa ousadia onírica.
Gostaria de ir concluindo estas
reflexões abordando dois temas: um mito que rapidamente comentarei e alguns
sonhos que o grande pajé Kamaiurá Takumã teve em setembro de 1996 durante uma
passagem sua por São Paulo (esses sonhos foram registrados pela antropóloga
Carmem Junqueira, que em seu contato de muitos anos com o pajé tem estudado a
sabedoria ancestral desses índios). Comecemos pelos sonhos. Takumã chega e é
inicialmente hospedado numa casa de praia adjacente a uma área de mata onde já
haviam sido vistas cobras. Ele foi alertado sobre o perigo, especialmente
porque tinha consigo a mulher e dois filhos pequenos. Em sua primeira noite
nessa casa ele sonhou: "Uma enorme cobra apareceu e tive medo. Mas fiquei
calmo quando ela me disse que era ela quem tomava conta daquela mata, ela era o
chefe das cobras. Disse então que eu não precisava ficar preocupado, porque
nada de ruim aconteceria para nós". Eis aí a alma ancestral se
manifestando sob forma de cobra, dando-lhe força e proteção para enfrentar
cobras literais ou metafóricas de nosso mundo civilizado. Ela é o grande poder
do inconsciente. É o verbete mais longo de qualquer dicionário de símbolos.
Esta é uma cobra mãe, que comanda o próprio mal, fazendo-se presente de maneira
tão viva no sonho de um índio preocupado com a selva dos brancos.
Mas vejamos o último sonho de Takumã
imediatamente antes de seu regresso ao Parque Nacional do Xingu: "Um índio
bem velho chegou perto de mim e me perguntou se estava tudo bem e se eu tinha
conseguido alguma coisa. Respondi não, não consegui nada." A antropóloga
que o hospedava ficou cismada ao ouvir esse sonho e perguntou o que era essa
"alguma coisa". Ele respondeu: "um Fax". Os Kamaiurá estão
organizando uma associação cultural e estão pensando em obter um aparelho
desses. Esse sonho, quinze dias depois da cobra, mostra que o inconsciente de
Takumã abarca desde a serpente arquetípica até a tecnologia de ponta. Nós
junguianos estamos querendo sonhar mais é com a cobra. Duas linhas se cruzam:
alguns de nós queremos entrar um pouco no lado de lá, e os índios no de cá. E a
situação agora é de ou vai, ou racha, porque eles estão por um fio de
desaparecerem por completo. Hoje há pouco mais de duzentos mil índios no
Brasil, quando na época do Descobrimento havia de seis a dez milhões. Havia
mais de mil línguas indígenas, tesouros irremediavelmente perdidos. Uma língua
leva mais de mil anos para se constituir. Como um milagre, sua estrutura emerge
inteira do inconsciente. Centenas de línguas já desapareceram no Brasil sem
terem deixado o menor registro e continuam até hoje a morrer. Algumas são
faladas por meia dúzia de pessoas e é provável que lá pela metade do próximo
século já não tenha sobrado mais nenhuma. O trabalho dos que estão coletando
mitos vivos nas línguas originais é portanto da maior importância, como por
exemplo o que vem sendo realizado pela antropóloga Betty Mindlin.
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