Os portugueses aqui chegaram com uma
fantasia de Paraíso na cabeça, uma fantasia de encontrar mulheres nuas, fartas
e disponíveis, em tudo diversas da mulher da Contra-Reforma, ambientadas numa
natureza dadivosa onde tudo fosse permitido e nada fosse pecado - como aliás já
lhes garantira o Papa Alexandre VI ao decretar que não havia pecado ao Sul do
Equador, o que eqüivale a dizer que a sombra aqui podia correr solta. Um bom
documento para ser interpretado num curso de formação de analista seria a carta
de Pero Vaz de Caminha, a primeira a descrever a nova terra e sua gente, na
qual claramente se percebe a profecia de que este país teria que agüentar sobre
as frágeis costas uma descomunal e perigosíssima projeção de Paraíso - que
ademais aqui se constituía para gozo e desfrute exclusivo do português, já que
o mesmo de sua psique emanava, e jamais da imaginação do habitante da terra,
para quem a floresta era sempre (como até hoje se constata) Paraíso, perigo e
dureza ao mesmo tempo. O que iria então acontecer? Toda uma obra histórica,
absolutamente masculina e fálica, que é a Conquista, será realizada por homens
brancos de um lado e mulheres índias, de outro. As mulheres portuguesas nem
mesmo nas caravelas embarcaram. Isso já há alguns anos me tem feito pensar no
seguinte: a anima estava ausente na formação do Brasil. O português traz
consigo uma imagem de mulher que não é a anima, mas uma fantasia que jamais
será capaz de integrar, pois para tanto amadurecer era preciso. Porque se em
lugar dessa falta de eros e de sentimento estivesse presente a verdadeira anima
portuguesa, aquela que se manifesta nos sonetos de Camões, na lírica de Gil
Vicente, nas cantigas de amor e de amigo, a maneira como os homens teriam se
relacionado com as mulheres teria sido outra e em lugar do mero acasalamento,
que foi o que ocorreu, uma junção psíquica poderia ter sido ensaiada. O que se
deu entre o homem e a mulher desses dois mundos foi apenas uma miscigenação a
nível biológico, físico e genético, mas não psicológico. sem absolutamente nada
a ver com os refinados sentimentos descritos pelo grande Poeta das navegações
lusitanas, sentimentos peninsulares que não chegaram a atravessar o Atlântico.
Somos portanto um caso histórico de
anima ausente. Américo Vespúcio chega aqui e batiza a terra com a forma
feminina de seu nome, mas não de sua alma. O nome "América" é sem
dúvida uma projeção, mas a projeção de um vazio, de um buraco, que ao se
materializar nega e destroi a verdadeira anima que lhe antecedia, porque toda a
alma ancestral é feminina em sua própria não-racionalidade. Na hora que o princípio
masculino chega aqui - quer dizer, a consciência crescentemente racionalizante
do século XVI - ele não se junta ao feminino, mas nega-o ao mesmo tempo em que
sobre ele projeta uma fantasia de feminino. Isso pode ser lindamente percebido
nos mapas desenhados nessa época, por exemplo o que estabelece a demarcação das
capitanias hereditárias. A linha vertical absolutamente reta do Tratado de
Tordesilhas é cortada pelas horizontais igualmente retas que definem os lotes
destinados aos primeiros capitães da terra. Aí temos Descartes subitamente
implantado sobre a mata Atlântica! Na alma ancestral e feminina não há essa
linha reta porque ela não funciona de modo cartesiano. A masculinidade
psicológica que aqui desembarca chega para arrasar e o faz indo sempre
diretamente ao alvo de sua ilimitada cobiça.
Há uma ausência do feminino
contemporâneo dessa racionalidade porque também na Europa da Contra-Reforma
(certamente não na cultura renascentista) ele estava reprimido. Portanto o que
nos coube foi um feminino projetado. A nível sociológico o que vai decorrer
disso é a criação de um povo a partir do acasalamento exclusivo de branco com
índia. O primeiro híbrido é o primeiro brasileiro. Esses mestiços vão se
multiplicando e gravitando em torno das aldeias que iam se formando, das
primeiras capelas e escolas jesuíticas em Porto Seguro, no Arraial da Ajuda, em
Salvador, Olinda, Vitória, São Vicente, São Sebastião do Rio de Janeiro, São
Paulo de Piratininga. Os índios vão sendo atraídos e catequizados, as mulheres vão
gerando filhos híbridos e esses primeiros mestiços circulam por esses arraiais
criados pelos jesuítas como cristão convertidos, selvagens domesticados.
Essa é a proto-célula de nossa
sociedade, o começo de nosso povo. E aí começa o drama de nossa identidade.
Esse filho não pode se identificar nem com o pai, nem com a mãe. Uma índia que
se acasalou com um branco e foi batizada não é mais aceita em sua aldeia de
origem, ela saiu e para lá não pode mais voltar. E nem sua língua pode
transmitir ao filho, fosse ela de que etnia fosse, porque a língua que seu
filho falaria era o tupi, língua geral que se imporia sobre as centenas de
línguas que então se falava no Brasil, e o português a seguir. A religião ela
certamente não transmitiria ao filho, pois acabava de formalmente renunciar à
que tinha quando forçosamente aceitava a do dominador, e se alguma mitologia
hipoteticamente tentasse ensinar à nova geração, seria por certo o que mais
ajudaria a esta na impossível tarefa de se descobrir a si mesma no novo ciclo
histórico que se inaugurava.
A identificação com a figura materna
era portanto inviável. E com o pai tampouco podia esse filho vir a
identificar-se, uma vez que na Península Ibérica um mestiço, mameluco e
bastardo não tinha lugar na sociedade de estamentos regidamente delimitados. Se
um certo Dom Manuel de Faria resolvesse, depois de trinta anos de Brasil,
regressar para Coimbra levando consigo na caravela os filhos que com várias
índias tivera, estes não poderiam seguir carreira militar, nem religiosa, nem
acadêmica, nem civil, e muito menos casar-se com moças da mesma condição social
de seu pai - esses filhos brasileiros seria párias na terra paterna.
Quem é pois esse homem do Novo Mundo
que não pode se identificar nem com pai nem com mãe? Nas palavras de Darcy
Ribeiro, que melhor do que ninguém levou adiante esta reflexão, ele é um Zé
Ninguém. Portanto a alma brasileira que se plasma a partir do contato entre
duas grandes tradições é a alma do anônimo ninguém. Daquele que não sabe quem é
e não pode ter uma raiz nem para o lado de cá, nem para o lado de lá, portanto
um desarraigado a carregar consigo uma pesada problemática existencialista já
no século XVI que nem Heidegger conseguiria equacionar.
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