Isso é uma perda, uma maldição, em
nada menos trágica do que as que se abateram sobre Tebas ou Micenas; é um fator
desagregante a operar sem trégua em nossa vida consciente e inconsciente. Está
aqui bem ao nosso lado, sobre nosso ombro esquerdo, esse Outro nosso que não
temos condições de incorporar. Não porque não queiramos, mas porque não há
como. Há na verdade muito trabalho a ser feito até que isso seja psiquicamente
possível. O conhecimento da alma ancestral, da cultura indígena e da mitologia
precisaria se espalhar pelo Brasil inteiro, para que as novas gerações fossem
educadas trazendo em seu imaginário todas as cobras, todas as onças e
arco-íris, todos os espíritos da floresta, as maravilhas, os terrores e as
metamorfoses que jazem desativados no fundo do inconsciente de todos nós.
Quando esse mundo renegado for introduzido no imaginário das crianças, elas
começarão a desenvolver naturalmente outros conceitos e outros valores e a
partir de um certo ponto começarão a perguntar por que sim e porque não, por
que o Brasil é assim, por que se faz um represa que acaba secando um rio (o
Tocantins), por que a floresta está sendo destruída, por que os índios estão
acabando - ou seja, que modelo de país é esse que nos subjuga. E esse
questionamento todo não será o resultado de um doutrinamento ideológico e
político, mas resultará sim do estado em que se encontrar um dia o imaginário
da nova geração. Que se nutre de imagens e de nada mais.
Somos portanto possuidores de uma
verdadeira Enciclopédia Britânica de imagens brasileiras e elas não estão
alimentando nosso imaginário. Para falar com a alma é preciso alma, para falar
com o imaginário é preciso imagens. Isso vai demorar. Não chegaremos a ver. Mas
temos que fazer o que é possível, aqui e agora - no nosso caso de analistas, me
parece, o que podemos fazer é trabalhar e criticar a consciência e mostrar-lhe
novas possibilidades. Rever e repensar nossas categorias e nossa
pseudo-mitologia. A maneira como a História do Brasil é ensinada é brutalmente
anti-psicológica, além de ser falsa em muitos aspectos. É preciso ensinar que o
Brasil não foi descoberto mas ocupado; que isto não era terra de ninguém, mas
de alguém que permitiu que o invasor entrasse por achar que este que chegava
era seu salvador, alguém que viria trazer-lhe o que faltava. Os índios abriram
os braços e as pernas para receber o europeu. Que veio e fincou uma cruz na
carne da religião indígena, como um punhal a atravessar-lhe a alma. O padrão de
Porto Seguro, primeira marca da conquista - equivalente, numa analogia moderna,
à bandeira americana plantada no chão poeirento da Lua pelo astronauta tornado
herói - é uma pedra que traz esculpidas numa face as armas de Portugal e na
outra a cruz de Cristo. Esses são os símbolos do começo de nossa História. O
que significa psicologicamente essa união entre cruz e espada? Como olhar para
a cena da Primeira Missa celebrada no Brasil, tema ufanista de nossa pintura
acadêmica, e não perceber nela o começo do genocídio religioso? Quem é o
verdadeiro Sacrificado dessa eucaristia? Não o corpo de Cristo, mas a alma
indígena - e é precisamente essa idéia subversivamente nova e incômoda que a
consciência coletiva deve agora abrigar em seu centro, já que por séculos a
manteve negada e reprimida.
Urge perceber que a história dessa
primeira missa e de todas as outras que se seguiram não é porém a alma
indígena, como seria de se supor, por ser ela o verdadeiro objeto do
sacrificado eucarístico. Transsubstanciada, a alma ancestral sacrificada, como
a hóstia, seria pela própria coerência simbólica da missa redevolvida perene e
fortalecida pela sua junção ao espírito de Cristo. Mas não. Não foi esse o
mistério operado pela missa. A missa indígena é o inverso do processo de
individuação, é um ritual para desfazer identidades. Na missa que Anchieta
verteu para o tupi (Glória), os acólitos índios eram ensinados a pedir a
Cristo, cantando:
Vem trazer-me a
alegria, trazer-me a tua virtude.
Que eu cumpra a tua palavra e te ame no meu coração.
Tu te tornaste criança porque querias viver.
Vem! E tomara que o mal se afaste de mim para sempre.
Que eu cumpra a tua palavra e te ame no meu coração.
Tu te tornaste criança porque querias viver.
Vem! E tomara que o mal se afaste de mim para sempre.
Ou seja, a missa instaurava como
verdade dogmática que o Mal era imanente à essência dos homens da terra e que
só a religião do conquistador poderia redimi-los de tal sina perdida. Aí a cruz
e a espada se casaram em perfeita e indissolúvel comunhão de bens.
O que as missas de todo o período
colonial de 1549 em diante fizeram descer pela goela abaixo de uma população
conquistada não foi a hóstia da valorização da alma, mas a de sua destruição.
Foi a hóstia de um catolicismo defensivo, atacado pela Contra-Reforma, que
reinstaura sempre o mesmo mecanismo de projeção da sombra. O catolicismo
defensivo faz com que o homem ibérico só veja virtudes em si e projete toda a
sua sombra sobre o índio, que passa a ser visto como um ser pecaminoso, criado
pelo demônio, que não obedece a ninguém, sem lei e sem Deus, um ser inábil para
o trabalho, ocioso e preguiçoso, um lascivo incorrigível, portador de todos os
pecados, vícios e imperfeições de que é capaz a natureza humana - se é que
humanos chegavam a ser. O invasor se sente assim eticamente legitimado a
melhorar esse ser ignóbil, dando-lhe uma alma para que ao menos se eleve à
categoria de homem. Os missionários jesuítas passarão então a reencontrar o
mito da Criação, sendo eles obviamente Deus e os índios a argila a ser moldada
à imagem e semelhança do criador. Este é o começo de nossa alma civilizada e
esta é nossa pseudo-mitologia.
A pedagogia instaurada no Brasil
nascente consistia em tomar um aprendente e lhe dizer, como o fez José de
Anchieta, o patrono da educação: "esqueça quem você é, tenha vergonha de
si mesmo, largue tudo, olhe para mim e queira ser como eu". Isso ainda
está vivo no Brasil, porque quando olhamos para o Primeiro Mundo até hoje
fazemos a mesma coisa, especialmente com relação ao pensamento de lá:
"esqueça, esqueça, esqueça, olhe para o outro, queira ser igual ao outro,
pense como ele pensa". A pequena escola jesuítica, em torno da qual
formavam-se os primeiro núcleos habitacionais e para onde convergiam os índios
cristianizados, é considerada o marco inicial da sociedade brasileira: meninos
índios ensinados por missionários, casas de taipa, cercas, primeiras ruas. Mas
a pedagogia que se praticava nessas escolas - São Paulo começou assim, 1554,
nos campos de Piratininga - era da negação do ser indígena.
Esses fatos históricos todos precisam
ser revistos e interpretados sob um novo prisma que nos ponha no encalço da
alma perdida e da individuação abortada. As crianças de hoje precisam ouvir que
ao chegar aqui a esquadra descobridora cometeu o primeiro ato anti-ecológico, a
derrubada do pau brasil que nos nomeia. Portanto é em 1500 que se origina nosso
atual problema de devastação florestal e de destruição da natureza. Uma imagem
que expressasse essa idéia deveria aparecer na capa dos livros escolares
patrocinados pelo Ministério da Educação até que fosse fixada e lançasse raiz,
em substituição a toda uma galeria de imagens alienantes que trazemos no porão
da mente e que só nos afastam de nós mesmos por nos manterem na inconsciência.
A árvore pau brasil é um símbolo do nosso Self. Começamos derrubando a árvore
que nos nomeia. O que isso tem a nos dizer sobre nossas próprias dificuldades
de crescimento?
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